quinta-feira, 14 de junho de 2012

Conto - Herança

Olá! Desculpem o tempo que tenho passado sem postar nada, minha vida anda meio corrida. Em compensação, tenho um conto muito legal para publicar. Foi realizado um concurso de contos entre o Ensino Médio da minha escola chamado "Do Olhar à Palavra", no qual os inscritos tinham que escrever um conto e tirar uma foto relacionada a ele. De 16 candidatos, peguei o segundo lugar.

Essa é a minha foto:


E esse é o meu conto:

Herança

     Era dia de festa, de multidão.
    Eu havia passado a semana toda trabalhando em aspectos materiais. Comprara um vestido vermelho – muito caro, por sinal – numa loja de confecções finas. Entre muitos outros, aquele havia me chamado a atenção justamente por causa da cor. Era mais bonito que os roxos – um deles era longo e reto, enquanto o outro tinha um corpete e descia em babados até os joelhos – de cetim e renda. Mais vistoso que o verde com alças finas, o preto curtíssimo e o alaranjado com um detalhe floral. No final, havia ficado indecisa em relação a dois: um azul-marinho e um vermelho, ambos não muito curtos, sem alças e emanando a essência da juventude. Eram perfeitos então; afinal, eu estava apenas terminando o ensino médio. Só depois de todos esses rituais teria a chance de conhecer o real significado da palavra independência. Abriria mão da segurança de morar com a família e partiria rumo ao desconhecido. Afastar-me-ia de todos os meus amigos, pessoas com as quais eu havia convivido nos últimos dez anos. De certo modo, eu sabia que não seria a primeira a passar por isso; minha irmã morava em outro estado havia mais de seis anos e ainda parecia inteira.
    Talvez, sentiria mais falta de minhas melhores amigas. Não estaríamos mais juntas todos os fins de semana, nem poderíamos sair nas tardes de domingo simplesmente para caminhar. Era assustador pensar sobre o grande impacto que aquela noite de formatura teria sobre nossas vidas, e foi com essa ideia em mente – o impacto, a mudança brusca – que me decidi pelo vestido vermelho.
    A maquiagem – que eu mesma fiz, para economizar o salário magro de uma secretária - era simples, mas forte, com sombra preta e batom vermelho. Meus cabelos - geralmente escorridos e horrendos - pendiam em cachos definidos, mas não duradouros, ao redor de meu rosto. Usava uma pulseira de ouro que ganhara no ano anterior, que combinava com os brincos e o anel discreto. Pouco antes de sair de casa, olhei-me no espelho. Estava bonita, mas de certa forma irreconhecível. De repente, senti uma estranha sensação de estar vendo alguma coincidência: irreconhecível era a palavra que definia meu futuro.
    Minha mãe já me esperava no carro, pois a fina chuva que caía naquele momento poderia arruinar toda a minha tarde de embelezamento. Durante todo o caminho, trocamos duas ou três palavras. E o fato de tê-la conhecido menos de três meses antes não ajudava muito. Ela saíra do país quando eu ainda era criança para traficar drogas ou se prostituir. Ou talvez não. Aquelas informações para mim eram dispensáveis. O que mais me doía era a doença que ela havia deixado comigo e com minha irmã. Um dos psiquiatras disse que o transtorno não é tão forte em mim, mas minha irmã podia ser considerada um caso “um pouco mais sério”. Mas o problema volta a ser meu quando passei a fingir que tomava aqueles controladores de humor.
     Eu preferiria que meu pai me levasse apenas para me livrar de momentos como aquele, a sós com minha mãe que chegara havia tão pouco tempo. Porém, meu pai nunca mais sairia de carro comigo, pois estava morto; e era por isso que minha mãe tinha vindo. Devo admitir que achava surpreendente vê-la largar tudo apenas para que eu pudesse terminar o colegial sem ter que sair da cidade. Surpreendente, sim, mas não me fazia gostar mais dela. Depois de séculos de silêncio, resolvi falar para ver se passava minha náusea por estar perto dela. Perguntei-lhe de modo hostil se iria me buscar no fim da noite ou se teria que gastar mais dinheiro com táxi.
    Mas eu não me recordo de sua resposta. Não consigo me lembrar do começo da festa; como entrei, com quem falei. Não faço ideia de que tipos de música dançamos. Lembro vagamente de um lugar escuro com uma roda de pessoas. Havia fumaça e uma estranha sensação vertiginosa. A névoa mudava de cor alternadamente, indo do branco ao vermelho, depois ao azul e verde. Bem baixinho, John cantava alguma coisa sobre a chegada do sol. Amarelo como a estrela era aquela coisa estranha que eu estava bebendo; não sabia mais o que era.
     Depois disso, há um grande vazio, e em seguida vem o momento em que eu cruzava o estacionamento às quatro horas em ponto, sem ninguém à minha volta. A festa ainda estava a todo vapor, mas algo fez com que eu saísse. Não sei se foi uma ligação ou se já tinha algo combinado. Eu estava mais que bêbada. Mal conseguia andar com aquele salto enorme. Antes de chegar à metade do percurso até a próxima calçada, desisti da luta e sentei-me no chão para desafivelar as sandálias.
    Após mais um branco, lembro-me de estar já na calçada, novamente de sandálias e usando um casaco grande demais para mim. Eu estava abraçando alguém, mas não sei quem. Quando falou, sua voz grossa saiu aveludada, fazendo com que eu me sentisse mais quente e confortável.
     Sun, sun, sun, here it comes!
     Recuei para encará-lo. Era estranho não me lembrar do rosto, apenas de um lampejo de sorriso. Andamos de mãos dadas por alguns segundos.
    As horas seguintes foram um misto de tudo o que se pode sentir. Voltei para dentro do salão acompanhada. Havia muitas pessoas dançando, mas o chão também se movia. Apesar de alguém ainda estar alegre pelo sol, o piso de madeira e os pilares dançavam algo mais parecido com uma valsa. Mais algumas taças de vinho, mais alguns momentos de amnésia.
     Ainda ouvia música saindo de algum lugar, mas estava alheia a tudo aquilo. Estávamos nus, ninguém podia nos ver ali, então tínhamos que acabar logo. Tínhamos, mas não queríamos. E eu ainda não conseguia analisar seu rosto. Ficamos ali mais alguns minutos e nos arrumamos para sair. Na metade da escada, a música parou e todos começaram a gritar. Provavelmente queriam o som de volta. As luzes estavam todas amarelas ou alaranjadas. Os pilares continuaram dançando metodicamente.
   
*  *  *

    Acordei com um holofote apontando diretamente para meus olhos. Acordei e, assim que abri os olhos, constatei que não era realmente o que pensava. Tudo bem; confesso que a possibilidade de haver um holofote evidenciando minha insignificante figura naquele instante era tolice. O que seria, então? Uma lanterna, talvez? Então, ainda era noite? A luz era tão forte que não me permitia enxergar nada além dela. Minha visão estava tão fora de foco que eu mal consegui perceber a presença de um retângulo, provavelmente metálico, emoldurando toda aquela luminosidade. Após algum tempo, reparei que o retângulo estava divido em triângulos, que por sua vez abrigavam pontos de luz fluorescente. Subitamente, a palavra triângulo voltou para o centro de meus pensamentos. Triângulo. Triângulo das bermudas; Triângulo Mineiro. Minas. Libertas Quae Sera Tamen. Meu cérebro lutava para juntar informações; formar algo que tivesse nexo. Voltei a raciocinar. Branco, luz. Paraíso. Morta? Impossível. Apaguei.
      
    Passados alguns minutos – ou horas? Dias? Anos? – acordei novamente por causa da maldita luz. Mas havia alguma diferença da última vez. Naquele momento, eu era capaz de ouvir algumas vozes ao fundo, baixinhas. Olhem, ela acordou de novo; Ei, está me ouvindo? Vá chamar o doutor. Passos. Alguém – uma pessoa totalmente estranha para mim - estava deixando o recinto. Certo. Se ela estava chamando um médico, estávamos num hospital. Hospital? Por quê? Eu sabia que provavelmente devia ter sofrido uma overdose, mas nada que não pudesse curar com um banho frio. Só Deus sabia quantas vezes havia ficado mal por ter bebido e depois estragado minha reputação. Havia parado de contar depois do meu último aniversário, quando havia batido meu recorde e ficado com dez pessoas, seis delas homens. Até que não estava tão mal. De qualquer forma, eu sempre culpava a loucura que minha mãe havia deixado de herança.
    Havia algumas máquinas ao lado da cama e eu estava tomando soro. Uma enfermeira disse que eu poderia me levantar se quisesse, e que minha mãe estivera junto comigo por muito tempo, mas tinha ido para casa tomar um banho e pegar algumas coisas para mim. Por um momento, imaginei que coisas seriam. Roupas? Um livro? Seria bom ter o que fazer depois de descobrir o que havia acontecido. Respirei fundo – o que me causou dor e arrependimento – e falei:
     - Minha irmã não está?
    - Não. – A enfermeira parecia estar com pressa, pois saiu do quarto sem falar mais nada. Atrás dela, outras duas figuras vestidas de verde-claro seguiram depressa.
Levantei-me com alguma dificuldade e caminhei até um espelho perto de uma mesinha, percebendo que havia acontecido mais naquela noite do que eu me lembrava: Além da constante dificuldade de respirar, havia hematomas por todo o meu pescoço e eu tinha levado pontos na testa e no queixo. Entrei no banheiro e ergui a camisola. Meu corpo inteiro estava roxo e esfolado; parecia que eu tinha sido espancada. Dei meia volta e deitei-me novamente. Ouvia uma voz masculina resmungando em algum lugar. Ao olhar para o lado, vi uma pequena televisão ligada, na qual um repórter de terno cinza falava sobre um incêndio em algum lugar. Como não estava a fim de ouvir, apertei o botão mudo.
Alguns minutos depois, minha mãe voltou. Ficou cerca de meia hora dizendo que, apesar do longo período de afastamento, gostava muito de mim e ficara apavorada com os acontecimentos, por isso planejava uma viagem de férias para recuperar o tempo perdido. Mais tarde, trouxeram-me uma comida totalmente sem sal que eu tive de comer. Sofri com os hematomas e cortes ao tomar banho, e constatei que seja lá o que for que usaram em mim, tinha perdido o efeito, e eu sabia que não ia ser fácil. Minha mãe dormiu antes de eu sequer estar com sono, e só me restou vagar o olhar pelas paredes do quarto até que a insônia se fosse.
Em meu sonho, eu flutuava em um mar de rostos, alguns conhecidos e outros não. Cada um deles despertava alguma emoção, positiva ou negativa. Acordei em algum momento da madrugada, sozinha e sem um pingo de vontade de voltar a dormir. Sentia uma vontade estranha, um sentimento de pesar. Não sei ao certo, mas tinha a impressão de ter deixado mais coisa passar, pois parecia que estava naquele hospital há dias e que tinha esquecido todos eles. Queria - de alguma forma - por um fim em tudo, principalmente naquele aperto no peito. Era como se alguém tivesse aberto um buraco bem onde costumava ficar meu coração e colocado ali um bloco de gelo. Era uma dor tamanha que chegava a ser física. Dormi novamente. Não sei a razão daquela sensação, mas tinha algo a ver com uma notícia muito ruim, que eu não consegui lembrar.
As horas – ou dias – seguintes são apenas uma tela preta. O próximo momento que ainda reside em minha mente começa com a sensação de liberdade, pois não havia teto sobre minha cabeça: Eu estava numa cobertura. E chorava ruidosamente.
Ventava muito lá em cima, e eu podia ver grande parte da cidade. Ameaçava chover, mas eu não me apressei. Ninguém sabia que eu estava ali, então me sentei em um dos cantos da laje e passei a olhar as estrelas. Do céu, desci meu olhar para minhas roupas. Eu estava usando jeans e camiseta, ícones da casualidade. Havia uma caneta e um papel em branco no chão ao meu lado. Escrevi qualquer coisa e o dobrei, guardando num dos bolsos. Senti que precisava fazer logo o que planejava. “Se me impedirem desta vez, eu não teria outra chance”. Esse era meu pensamento.
Caminhei em direção à ponta do prédio e subi em um tipo de mureta que havia na borda. Eu podia sentir o frescor das primeiras gotas da leve chuva noturna. Quando abri os braços, as pessoas que estavam lá em baixo notaram minha presença e começaram a gritar, e duas entraram no prédio. Mas elas não conseguiriam. Eu já estava morta. Virei-me de costas para todos eles e me deixei cair. Durante alguns segundos, meus cabelos foram bagunçados pelo vento, depois tudo escureceu.
Abri novamente os olhos. Uma multidão se formara à minha volta, todos desesperados. Fui perdendo os sentidos com vagarosidade semelhante ao fim de uma canção ruim. Primeiro o tato, quando o chão áspero e frio passou a ser nada. Depois o olfato e o paladar, quando deixei de sentir cheiro e gosto de sangue. John havia voltado a falar do sol, mas depois de poucos segundos deixei de ouvi-lo também. As luzes noturnas foram se apagando nos cantos de minha visão até que tudo ficou negro. Parei de respirar.

                                                                                              
E aí, digno? Espero que tenham gostado! 

Beijos!

Um comentário:

  1. Adorei o conto!!! Acredito que destrinchar um sofrimento profundo com as palavras certas (nem comuns demais, nem rebuscadas demais) seja o maior desafio para um autor que quer fazer seu leitor entrar na mente desvairada de sua personagem...E esse conto conseguiu...Então parabenizo a Nathalia pelo conto e pelo estilo... e claro por "suicidar sua personagem" adoro esse tipo de final!!!!!!!!!

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